Filosofia e senso comum
Não raro, a filosofia também se põe como um conjunto de
idéias, uma doutrina e, nesse sentido, se parece com a ideologia. E muitos
confundem uma com a outra quando ambas assim se apresentam, como doutrinas. Todavia, a
filosofia, isto é, a filosofia que não se corrompeu em ideologia, não se
apresenta “na frente”. Ela é o que vem “por trás”. Não que esteja escondida.
Ela vem por trás por uma razão simples, a filosofia é uma atividade racional, e
só podemos usar da razão de modo explicativo e como fornecedora de boas
justificações, quando os fatos já se passaram e quando o discurso histórico, ao
menos em parte, já se fez.
“A Coruja de Minerva levanta
vôo ao entardecer”, escreveu Hegel. Exatamente: só depois que há a história,
então, ao final do dia, a razão passeia sobre tudo e fornece seu veredicto,
tornando tudo que é insano, louco e sem sentido, em algo com algum sentido
– o que se pode explicar aparece, e o que se pode compreender ganha vida. Esse
trabalho da razão, o de dar sentido, não é senão o trabalho da filosofia. A
filosofia vem depois, vem tardiamente, vem por trás, não
tem como vir pela frente.
A coruja é ave de rapina,
precisa enxergar todo o terreno à noite, caso queira conseguir alimento. Deve
ver longe e de modo bem amplo, e não pode errar a rasante e não pegar sua
presa. Nada tem a ver com as outras aves pequenas. O pardal acorda cedo e sai
para revirar o esterco. Come bichinhos do esterco, mas quando perguntado por
outros animais sobre o que é seu alimento cotidiano, vive dizendo que são bons pedaços de
pão da mesa dos humanos. A coruja é a filosofia, o pardal, a ideologia.
O senso comum mais ou menos cru toma a filosofia e a
ideologia como doutrinas. E há verdade nisso. São doutrinas. Mas não de modo
absoluto. O senso comum não é analítico e, então, não fazendo o trabalho de
distinguir o joio do trigo (alguns gostariam de dizer, crítico), engole indistinções que não se deveria
engolir de modo algum. Então, nãovê
que se em algum momento a filosofia e a ideologia quase se igualam, ao serem
doutrinas, ainda assim elas não podem ser tomadas como a mesma coisa. Pois há a
doutrina da coruja e há a doutrina do pardal.
O senso comum não acredita que é necessário, a todo o
momento, fazer distinções. Ele não aprendeu a lição dos filósofos medievais,
que diziam que quando encontramos uma contradição, o que temos de conseguir
esboçar é uma distinção. Sendo assim, ele toma ideologia e filosofia como
doutrinas e não vê as características da primeira como bem distintas da
segunda. Por agir assim, sem grandes preocupações com a distinção, sem achar
que contradição é algo que não pode ser engolido, ele é mesmo o
senso comum, o pensamento que tem dificuldade em se engajar na filosofia. Não
raro, ele está envolto na ideologia e imagina estar fazendo filosofia.
Encontramos boa parte dos
professores, jornalistas, médicos etc. totalmente imersos em ideologias. Eles acreditam que só os não
escolarizados vivem sob o domínio do senso comum, e que eles próprios funcionam
segundo o aparato dado pelo pensamento crítico, livres da ideologia. Todavia,
talvez isso que dizem já seja, então, uma ideologia. Afinal, é o que vem na
frente – é a primeira coisa que dizem, quando querem se distinguir dos outros.
Caso seja assim, então imaginam estarem endossando, de modo esperto,
filosofias. Podem não estar. E nesse caso específico, talvez não estejam mesmo.
Por não se preocuparem em fazer
distinções, e então ver em que poderiam ser ou não diferentes dos não muito
escolarizados (“o povo”), eles próprios podem estar apenas no campo do senso
comum.
Aliás, diga-se de passagem, esse tipo de intelectual acaba mesmo se envolvendo
em uma ideologia específica, que é a que endossa a idéia de que o senso comum é
o “pensamento ingênuo”, e que o “homem do povo” ou “o povão” é sempre enganado,
ludibriado exatamente por se manter na ingenuidade.
É claro que a proteção contra a
ideologia é o uso da razão. Todavia, temos de nos lembrar que o uso da razão, a
racionalização de tudo, pode também ser ideológica.
Um comentário:
Dei uma passadinha aqui para ler, refletir e desfrutar um pouco da sua intelectualidade. Adorei. Abraços fraternais e sincera amizade.
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