Características gerais do que é Ideologia
“Qual a ideologia que está por trás disso?” – eis aí uma
pergunta estranha, mas que várias pessoas formulam, descuidadamente. Não há ideologia “por trás”. Caso exista
algo “por trás” de um texto ou de um vídeo ou de uma peça de teatro ou de
uma bula de remédio ou de uma legislação, pode acreditar, você não está diante
da ideologia. Por uma razão simples:
ideologia é algo que não vem “por trás”, ideologia é o que vem em primeiro plano, é o que está “na frente”.
Quando notamos movimentos
sociais e de grupos, institucionais ou não, aprendemos rapidamente isso: a
ideologia e a propaganda são parentes não distantes, e a semelhança familiar é
justamente esta: ambas querem
aparecer.
Um conjunto de caravelas
espanholas ataca as caravelas inglesas. Eis aí o tempo de Elizabeth. O que carregam os espanhóis junto de suas
velas, ou em bandeiras ou como figura estampada nas próprias velas? O Cristo na
Cruz. É o desenho do Cristo o que está “por trás”? De modo algum, a gravura,
que é sem dúvida, no caso, o símbolo ideológico, vai à frente. Não se esconde.
Mostra-se. Tem de se mostrar.
Vejamos agora um documento educacional, uma peça de legislação.
Vamos às reformas educacionais de Getúlio Vargas. Ali, claramente, o ensino médio aparece como voltado para a criação de “elites
condutoras” – esta é a frase usada à risca, na letra da lei. Ora, a ideologia
conservadora, que diz que o povo precisa ser conduzido por grupos da “elite”,
está escondida? Está “por trás”? De modo algum. Está explícita e bem acomodada
nas primeiras linhas. Está na frente.
A primeira característica de um conjunto de
idéias que se pode chamar de ideologia é a de vir antes que qualquer outra
coisa. Ela pertence ao que se quer mostrar e, de preferência, em primeiro
plano. Ora, mas há outras duas características da ideologia.
A segunda característica é a busca de
universalidade a qualquer preço. Um conjunto de idéias que é bem particular,
que não tem grande força lógica para se tornar universal e, no entanto, busca
se tornar universal e quer ser uma verdade independente de todos e uma verdade
para todos, já está funcionando como ideologia. É próprio de um conjunto de idéias que se quer
transformar em ideologia procurar se colocar de modo abstrato, para ganhar
universalidade.
“O amor é a única lei” é uma
idéia cristã, contra a idéia pagã da “lei do olho por olho e dente por dente”.
Todavia, quando já ninguém sabe o que é que se quer dizer por amor, dado sua
transformação em palavra abstrata, então a frase pode ser endossada por todos.
Todo mundo diz que a coisa mais importante do mundo é “ter amor”. Assim, o
próprio cristianismo, se está ligado a isso, se comporta como ideologia.
A terceira característica da ideologia é que ela quer antes mostrar a verdade “que se tem de seguir” do que
um conjunto de enunciados que, possa levar à reflexão a respeito de outros
conjuntos de enunciados e assim por diante. Ela, a ideologia, aceita pouco aquilo que Robert Brandom, louvado
por Rorty, chamou de “o jogo de dar e pedir razões”. Nesse sentido, é próprio
da ideologia o engodo, a ilusão ou o erro.
Nesse caso, não falamos de erro
psicológico (da percepção ou do raciocínio). Trata-se de engano, certamente,
mas como uma feição bem especial, a saber, nem sempre a ilusão ideológica se
desfaz uma vez que seu mecanismo de engodo é revelado. Trata-se aqui do
contrário do erro percetivo ou de um raciocínio equivocado, que pode ser
corrigido, e geralmente o é, quando vemos que em que lugar a frase endossada
está dando problemas O engodo ideológico permanece, mesmo quando denunciado. A
realidade que vemos ideologicamente não muda, mesmo que o que tomamos por
realidade esteja, então, denunciado como produto ideológico.
Por exemplo, se alguém olha
para a realidade de negros e brancos, em um país fortemente racista, em que há
discriminação contra os negros, e vê os negros como inferiores, o fato de se
denunciar que isso não é nada senão uma visão ideológica, não extirpa dos
“olhos” de quem assim vê tal realidade. Ele não vê algo novo. Ele não pensa de
modo novo. A denúncia não altera a compreensão (imediata) como alteraria a
compreensão de alguém que é denunciado ter cometido um erro lógico, como o de
manter duas sentenças contraditórias ao mesmo tempo e no mesmo lugar. A
denúncia não altera a compreensão (imediata) como mudaria a compreensão de
alguém que vê um cachorro e, ao chegar mais perto, percebe que errou, que o que
estava ali era um gato.
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