quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

A HISTÓRIA EM DETALHES


O cotidiano guarda ricas informações sobre o passado do homem. É só saber observá-lo.


Como professor sou adepto da chamada História do Cotidiano, corrente nascida na França na década de 1960 e que é cada vez mais valorizada. A proposta é simples: enxergar a realidade sob a perspectiva das pessoas comuns e das práticas, hábitos e rituais que caracterizam o dia-a-dia delas, tirando o foco dos grandes nomes e acontecimentos políticos e econômicos e voltando-o para riqueza que está próxima de todos, impregnada pela aparente banalidade do cotidiano. Investigar, por exemplo, como os cidadãos viviam, namoravam, noivavam e casavam, moravam, se divertiam, eram educados, nasciam e morriam.
A grande vantagem dessa abordagem é que ela envolve muito mais os alunos, funcionando como um facilitador para questões menos palpáveis, como a política e a economia.
Além disso, essa é a melhor forma de mostrar que a História é feita por todas as pessoas, em todos os momentos da vida – não apenas quando uns poucos participam de feitos extraordinários. “Esse viés consolida o estudo dos grupos anônimos (operários, crianças, quilombolas...), iluminando aspectos da vida deles que até então não eram vistos”.
Como chegar lá: Identifique no cotidiano elementos que ajudem a compreender a dinâmica, as crenças e o legado dos diferentes grupos humanos. Você tem acesso a esses elementos em livros, quadros, fotografias – e também à sua volta, em casas antigas, roupas de outras épocas, receitas de comida etc. Extraia dessas fontes o maior número de informações possível, para depois emendá-las, relacioná-las e generalizá-las.
Dica: Não encare o cotidiano como curiosidade. O ideal é ampliá-lo, conectando os vários fragmentos para obter uma visão estruturada da realidade. Veja-o como ponto de partida para um estudo amplo, não de chegada. Privilegiar situações cotidianas não significa deixar de lado as análises políticas e econômicas.
O segredo está em caminhar do particular para o geral – e não o contrário, como acontece muitas vezes: “Passe sempre da pequena para a grande História”

Da cocada ao Brasil colônia
Um ótimo exemplo para entender a História do Cotidiano é o legado do período colonial: O açúcar. Como principal ingrediente, o açúcar – está presente em todos os momentos da vida do brasileiro: no café da manhã, no almoço de domingo, nas festas de aniversário.
O ponto de partida pode ser uma receita daquelas bem açucaradas, bem brasileiras, como a da cocada (a baixo). Você sabe quando ela foi criada? Para o sociólogo pernambucano e nordestino Gilberto Freyre, esse e outros quitutes são um legado do período colonial ou Nordeste doce. “À sombra da lavoura e da indústria da cana desenvolveu-se uma arte de doces que se situa entre as mais características da civilização brasileira”, ele escreveu em seu livro AÇUCAR. Foi nas cozinhas das casas grandes, pelas mãos das sinhás e das escravas negras, que o produto mais abundante no mundo dos engenhos foi sendo misturados com frutas e ingredientes locais e se transformando nas saborosas compotas que apreciamos até hoje.
Por que esse alimento era tão farto na época? A pergunta é um bom gancho para explicar o ciclo econômico que, junto com o do café, foi um dos mais importantes na história do país. A cana foi introduzida no Brasil pelos portugueses, que a conheceram durante as grandes navegações pelo Oriente. Aqui, a planta encontrou clima ideal para se alastrar e, rapidamente, virou a base do primeiro sistema econômico local: a plantation, que tinha como pilares a monocultura, o grande latifúndio e a escravidão. Onde estavam os canaviais? Eles se espalhavam por boa parte do litoral, principalmente nas capitanias da atual Região Nordeste – e, mais tarde, no Sudeste. O que são capitanias? Está ai uma chance de falar sobre a divisão política e territorial da então colônia.
O tema ainda nos remete ao sistema escravista, que predominou no país por mais de três séculos e teve profundas influências na formação da sociedade. Afinal, era para cortar cana e produzir açúcar que os negros eram trazidos. Como era a vida deles nos engenhos? Quais as contribuições que tiveram na formação da cultura brasileira? Como você vê, é um sem-fim de possibilidades, elos e caminhos. Tudo isso, quem diria, começando por um simples doce.
A receita da cocada: “Raspa-se um coco, faz-se a calda de 1 quilo de açúcar, junta-se o coco à calda e lava-se ao fogo. Quando a calda estiver em ponto de fio, tira-se do fogo e mexe-se com uma colher de pau até um pouco antes de açucarar. Em seguida deita-se o doce numa tábua ou numa mesa de mármore; quando estiver frio, parte-se com uma faca em losangos e põe-se ao sol para secar”. Extraída do livro Açúcar, de Gilberto Freyre.

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