segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Resenha de “Um Apólogo”, de Machado de Assis

Resenha de “Um Apólogo”, de Machado de Assis

Foi-me pedido o resumo desse pequeno conto na escola na qual trabalho para a realização de uma feira literária, mas, espere ai, eu sou professor de História e não de Língua Portuguesa ou de Literatura, mais isso já vem fazendo parte do meu dia-a-dia no universo do qual escolhi como oficio de professor e não custa nada em servir mostrando as outras habilidades existente no nosso conhecimento. Nada melhor do que passá-lo a todos, não é mesmo? Chego a confessar que foi muito prazeroso e gratificante. Assim, todos veremos a qualidade do grande escritor e ícone da Literatura brasileira do século passado e do mundo contemporâneo Machado de Assis. Segue o conto:

UM APÓLOGO

ERA UMA VEZ uma agulha, que disse a um novelo de linha:
— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma coisa neste mundo?
— Deixe-me, senhora.
— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.
— Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.
— Mas você é orgulhosa.
— Decerto que sou. — Mas por quê?
— É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu? — Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu?
— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...
— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás, obedecendo ao que eu faço e mando...
— Também os batedores vão adiante do imperador.
— Você é imperador?
— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...

Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:
— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima. A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile. Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E quando compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe:
— Ora agora, diga-me quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá. Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:
— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico. Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça: — Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!

Resenha:

Percebe-se, ao final deste conto, a observação da história por um “professor de melancolia”, isto é, um mestre na arte da conformidade, da indiferença, do desgosto, que diz estar servindo de agulha a muita linha ordinária, isto é, tem aberto caminhos, aberto oportunidades pra ele mesmo e, depois dele, se seguem pessoas com o intuito de se aproveitar do que ele faz. Hoje em dia há muitos conformados com a situação em que estão, e continuam fazendo as coisas só pra os outros se beneficiarem, sendo que esses últimos, que só querem se beneficiar existem aos montes, procurando tomar o lugar dos que avançam na vida. Temos de ser, assim, como os alfinetes, que não abrem caminhos pra ninguém, mas alcançam seus objetivos. Não há maneiras de se aproveitar destes. Com certeza, subiremos na vida dessa maneira, e cresceremos sem “encostos” à nossa volta.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

VOCÊ NÃO PRECISA PENSAR, ESTAMOS FAZENDO ISSO POR VOCÊ.

Você não precisa pensar, estamos fazendo isso por você.

Há uma decadência da inteligência. A individual e a coletiva. A inconsciente que dirige o instinto de sobrevivência e a consciente que dirige a faculdade de entender e aprender, de julgar e por tanto de distinguir entre o Bem e o Mal. Paradoxalmente somos menos inteligentes do que éramos quando não sabíamos voar para Marte. Ou reimplantar um braço, trocar um coração, clonar uma ovelha ou nós mesmos. Somos menos lúcidos, menos despertos que quando não tínhamos aquilo que serve ou deveria servir para cultivar a inteligência. Quero dizer, a escola acessível a todos é mais obrigatória, tem mais abundância e mais rapidez de informações, Internet, tecnologia para ensinar e não o faz. Há mais bem-estar para todos. Quando não havia, cada um precisava cuidar-se por si mesmo. E esforçava-se para raciocinar, pensar com sua própria cabeça como afastar o frio, mitigar a fome. Hoje não. Para todas as pequenas coisas a sociedade já propõe uma lista de soluções. Decisões já tomadas. Pensamentos já elaborados e preparados para serem utilizados. "We are thinking for you. So you dont have to". A gente já não pensa. Ou pensa sem pensar com sua própria razão.
Oriana Fallaci. A força da Razão. 2004. compilações.

SUCESSO NA VIDA?

SUCESSO NA VIDA?

Todos temos no decorrer de nossas vidas as mesmas dificuldades: a capacidade de consumo e o sucesso escolar dos filhos nos preocupam mais ou menos nos mesmos termos, além do desemprego que os ameaça, e até em nossas relações intimas temos globalmente as mesmas experiências, encontros, desencontros, separações, casamentos fracassados ou não, guarda de filhos, adolescentes difíceis, pais que estão envelhecendo, amigos em dificuldades, acidentes na vida...As coisas se passam mais ou menos da mesma maneira, quer nos tornamos milionários, craque de futebol, campeão de tênis, artista de novela, pianista virtuose: todos temos, na entrada da idade adulta ou até mais adiante, os mesmos fantasmas, de modo que o individual longe de se afastar do coletivo, é apenas seu rosto. O Estado deveria fazer do individual seu ponto de partida, onde deveria se enraizar e buscar forças, e também finalidade. Deveria procurar, quanto possível e razoável, ajudar, satisfazer, promover e fazer crescer o indivíduo. Longe de estreitamento egoísta, o individualismo moderno é literalmente obcecado pelo cuidado com o outro. Todos sabemos o quanto o isolamento é nocivo, e o quanto inexiste vida bem-sucedida sem experiências compartilhadas.
Não só o cuidado com os filhos está mais intenso do que nunca, mas o desejo de igualdade . À medida que há mais tentações, mais incitação ao consumo, há cada vez menos razões para não ceder, cada vez menos enquadramentos éticos que freiem os desejos e controlem os exageros. Pode-se de maneira incrivelmente rápida perder o senso da realidade... Diante de tais realidades começa a se tornar insuportável, para não dizer obsceno, o discurso dos "vencedores", dos que "estão por cima, tirando vantagem a qualquer custo", E daqueles que estão sempre glorificando o espírito empreendedor. Nem todo mundo pode vencer no sentindo a que eles se referem e é difícil imaginar um mundo em que só existissem executivos. Hoje, sabemos que mesmo se tivermos estudado muito, nos dedicado com afinco, podemos nunca sair do chão. O mérito é uma idéia bem relativa. O sucesso na vida não é o sucesso da vida e o melhor professor do mundo cujos efeitos benéficos para nossas crianças têm um valor inestimável... Nunca vai passar do seu modesto salário de professor. E, mesmo assim, eu penso que ele é mais importante para os nossos filhos, infinitamente mais, do que aquele cara da bolsa de valores...
Baseado no livro de Luc Ferre: "Famílias, amo vocês. Rio:Objetiva, 2008.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

O tamanho das pessoas


O tamanho das pessoas

Como se mede uma pessoa?
Os tamanhos variam conforme o grau de envolvimento. Ela é enorme para você quando fala do que leu e viveu; quando trata você com carinho e respeito, quando olha nos olhos e sorri destravada.
É pequena para você quando só pensa em si mesma, quando se comporta de uma maneira pouco gentil, quando fracassa justamente no momento em que teria que demonstrar o que há de mais importante entre duas pessoas: a amizade, o respeito, o carinho, o zelo e até mesmo o amor.
Uma pessoa é gigante para você quando se interessa pela sua vida, quando busca alternativas para o seu crescimento, quando sonha junto com você. É pequena quando desvia do assunto.
Uma pessoa é grande quando perdoa, quando compreende, quando se coloca no lugar do outro, quando age não de acordo com o que esperam dela, mas de acordo com o que espera de si mesma.
Uma pessoa é pequena quando se deixa reger por comportamentos clichês. Uma mesma pessoa pode aparentar grandeza ou miudeza dentro de um relacionamento, pode crescer ou decrescer num espaço de poucas semanas.
Uma decepção pode diminuir o tamanho de um amor que parecia ser grande. Uma ausência pode aumentar o tamanho de um amor que parecia ser ínfimo.
É difícil conviver com esta elasticidade: as pessoas se agigantam e se encolhem aos nossos olhos. Nosso julgamento é feito não através dos centímetros e metros, mas de ações e reações, de expectativas e frustrações.
Uma pessoa é única ao estender a mão. Ao recolhê-la inesperadamente, torna-se mais uma.
O egoísmo unifica os insignificantes. Não é a altura, nem o peso, nem os músculos que tornam uma pessoa grande...
É A SUA SENSIBILIDADE, SEM TAMANHO...

William Shaskespeare
http://www.releituras.com/ – acessado em 05/05/2006

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

O PORQUÊ DO ESTUDO HISTÓRICO

O porquê do estudo històrico...
Como estudar o passado, uma vez que não temos acesso a ele? Como relacionar-se com o que não existe? Por que estudar história se tudo o que dissermos ou soubermos do passado são interpretações? Essas indagações nos levam ao problema: por que estudar história? Por que nos determos sobre algo a que não teremos acesso?
De modo simplificado podemos dizer que estudamos história para entender como as relações e/ou alterações econômicas interferem em nossas vidas. Para entender como ocorrem as relações entre as pessoas (relações sociais) e de como pessoas, ou determinados grupos sociais ou instituições, entre as quais se estabelecem as relações sócio-políticas, tentam se impor sobre outros grupos ou pessoas, manifestando nisso as relações do poder político que norteiam a sociedade.
Embora não sejamos capazes de voltar ao passado, nem de chegar ao futuro, nem mesmo de manusear o presente, somos, mesmo assim movidos pelo eterno e incansável desejo de saber. E queremos o saber não só para nos apropriarmos dele, mas queremos nos apropriar do saber para possuirmos elementos de manipulação. O saber, portanto é uma das dimensões da política que é um dos braços da economia que interfere nas relações sociais e, portanto, interfere em nossas vidas cotidianas. Estudamos história não por amor ao passado, mas porque queremos interferir em nosso cotidiano, que é um presente fluído, constante e virtuosamente sendo arremessado ao passado.
Neste ponto é que entram a memória e os patrimônios. A memória como evocação do passado e o patrimônio como representação do passado. Tendo isso por base podemos dizer que, por mais que não tenhamos acesso ao passado o que inviabilizaria a história, podemos estudá-lo. E é o que fazemos pela mediação da história, pois somos buscadores do saber. E para termos acesso ao saber manuseamos os elementos que evocam o passado a fim de encontrarmos um significado – e assim damos significado àquilo que a memória nos apresenta ou àquilo que está preservado nos elementos patrimoniais. A história, portanto, é algo que se estuda indiretamente, por mediações: a mediação das teorias.
O problema do acesso ao objeto de estudo não é exclusivo da história. As chamadas Ciências Humanas se defrontam com esse problema. “Mesmo que as ciências humanas tenham começado a surgir no final do século XIX, até hoje enfrentam problemas na tentativa de estabelecer o método adequado à compreensão do comportamento humano” (ARANHA; MARTINS, 1997, p. 166). Essa dificuldade metodológica, continuam as autoras, se deve à complexidade que é o ser humano, à dificuldade de se comprovar experimentalmente, reações e comportamentos humanos e à impossibilidade de dados objetivos, pois não se repetem da mesma forma e nas mesmas proporções, mesmo que as situações sejam semelhantes.
Sabendo que são as concepções teóricas que sustentam a veracidade histórica, somos levados a nos confrontar com o problema da subjetividade e com a possibilidade da cientificidade da história. E com isso entramos naquilo que B. Mondin chama “ceticismo histórico” e de “realismo histórico”. Sendo que o “ceticismo” nega a possibilidade de se fazer ciência histórica principalmente por que os fatos são interpretados discordantemente. “a interpretação dos fatos é bem diferente conforme a história é escrita por um positivista, por um marxista ou por um católico” (MONDIN, 1983, p. 148). Mas, por outro lado mesmo havendo essa subjetividade, e não há possibilidade de excluí-la, permanece a afirmação da cientificidade não pela comprovabilidade, mas pela utilização de instrumentos teóricos adequados. Mesmo que o acesso ao fato seja indireto, é mediatizado pela teoria e pelo documento, a cientificidade é garantida pelo embasamento teórico.
Esse acesso indireto é o que os PCNs chamam de “subjetividade interpretativa”. Não se estuda o fato, nem o processo gerador do fato, mas as representações desse processo e desse fato. Os historiadores fazem suas pesquisas utilizando-se de documentos que podem ser escritos, iconográficos, arquitetônico, numismático, elementos culturais, os depoimentos dos que viveram o processo ou os fatos, etc. Podemos dizer, portanto que qualquer objeto ou realidade está carregado de história. E nessa história estão presentes muitas pessoas que vivenciaram os processos que foram os produtores dos fatos; pessoas que mantiveram as relações sociais, econômicas e políticas.O estudo da história, portanto “dilui” a distância entre o sujeito cognoscente e a realidade pesquisada.
Essa diluição das distâncias e a interpenetração entre o sujeito e o objeto de estudo instigou alguns historiadores a assumirem plenamente uma subjetividade interpretativa, questionando a dimensão real e o comprometimento do conhecimento histórico com a ‘verdade’ em termos de vínculo com a realidade social. (BRASIL, 1998, p. 32)
Sendo expressão de uma subjetividade, o conhecimento histórico depende de validação. Essa validade é conferida pelo “diálogo que o historiador estabelece com seus iguais, a coerência de sua abordagem teórico-metodológica e a organização do conhecimento por meio de uma formalização da linguagem científica da história” (BRASIL, 1998, 32). São as teorias científicas que dão sustentação ou veracidade à afirmação histórica.
Dessa forma, o estudo da história só tem sentido e validade, só ganha status de cientificidade a partir de uma metodologia aplicada ao processo da busca da compreensão daquilo que é apresentado como memória ou patrimônio. A validade ou verdade histórica depende dos elementos metodológicos que são convenções da comunidade científica atual. Não se faz história com os critérios do passado, ou de quem viveu o fato estudado, mas com nossos critérios olhamos o passado, inacessível.
Isso nos leva à importância da memória e do patrimônio para o estudo da história. E parece não ser exagerado afirmar que a memória pode ser vista como a mãe da história. Tanto no sentido de ver a história como ação humana, como no sentido de narrativa escrita dessas ações.


Texto na integra com todos os direitos reservados a Neri de Paula Carneiro – Mestre em Educação, Filósofo, Teólogo e Historiador. Publicado em: 07-04-2008
Seus textos são publicados regularmente no jornal Folha da Mata (Rolim de Moura-RO) nos blogs: http://falaescrita.blogspot.com/ e http://ideiasefatos.spaces.live.com/ e no site http://www.webartigos.com/
Acessado em 10/12/2008.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

A HISTÓRIA EM DETALHES


O cotidiano guarda ricas informações sobre o passado do homem. É só saber observá-lo.


Como professor sou adepto da chamada História do Cotidiano, corrente nascida na França na década de 1960 e que é cada vez mais valorizada. A proposta é simples: enxergar a realidade sob a perspectiva das pessoas comuns e das práticas, hábitos e rituais que caracterizam o dia-a-dia delas, tirando o foco dos grandes nomes e acontecimentos políticos e econômicos e voltando-o para riqueza que está próxima de todos, impregnada pela aparente banalidade do cotidiano. Investigar, por exemplo, como os cidadãos viviam, namoravam, noivavam e casavam, moravam, se divertiam, eram educados, nasciam e morriam.
A grande vantagem dessa abordagem é que ela envolve muito mais os alunos, funcionando como um facilitador para questões menos palpáveis, como a política e a economia.
Além disso, essa é a melhor forma de mostrar que a História é feita por todas as pessoas, em todos os momentos da vida – não apenas quando uns poucos participam de feitos extraordinários. “Esse viés consolida o estudo dos grupos anônimos (operários, crianças, quilombolas...), iluminando aspectos da vida deles que até então não eram vistos”.
Como chegar lá: Identifique no cotidiano elementos que ajudem a compreender a dinâmica, as crenças e o legado dos diferentes grupos humanos. Você tem acesso a esses elementos em livros, quadros, fotografias – e também à sua volta, em casas antigas, roupas de outras épocas, receitas de comida etc. Extraia dessas fontes o maior número de informações possível, para depois emendá-las, relacioná-las e generalizá-las.
Dica: Não encare o cotidiano como curiosidade. O ideal é ampliá-lo, conectando os vários fragmentos para obter uma visão estruturada da realidade. Veja-o como ponto de partida para um estudo amplo, não de chegada. Privilegiar situações cotidianas não significa deixar de lado as análises políticas e econômicas.
O segredo está em caminhar do particular para o geral – e não o contrário, como acontece muitas vezes: “Passe sempre da pequena para a grande História”

Da cocada ao Brasil colônia
Um ótimo exemplo para entender a História do Cotidiano é o legado do período colonial: O açúcar. Como principal ingrediente, o açúcar – está presente em todos os momentos da vida do brasileiro: no café da manhã, no almoço de domingo, nas festas de aniversário.
O ponto de partida pode ser uma receita daquelas bem açucaradas, bem brasileiras, como a da cocada (a baixo). Você sabe quando ela foi criada? Para o sociólogo pernambucano e nordestino Gilberto Freyre, esse e outros quitutes são um legado do período colonial ou Nordeste doce. “À sombra da lavoura e da indústria da cana desenvolveu-se uma arte de doces que se situa entre as mais características da civilização brasileira”, ele escreveu em seu livro AÇUCAR. Foi nas cozinhas das casas grandes, pelas mãos das sinhás e das escravas negras, que o produto mais abundante no mundo dos engenhos foi sendo misturados com frutas e ingredientes locais e se transformando nas saborosas compotas que apreciamos até hoje.
Por que esse alimento era tão farto na época? A pergunta é um bom gancho para explicar o ciclo econômico que, junto com o do café, foi um dos mais importantes na história do país. A cana foi introduzida no Brasil pelos portugueses, que a conheceram durante as grandes navegações pelo Oriente. Aqui, a planta encontrou clima ideal para se alastrar e, rapidamente, virou a base do primeiro sistema econômico local: a plantation, que tinha como pilares a monocultura, o grande latifúndio e a escravidão. Onde estavam os canaviais? Eles se espalhavam por boa parte do litoral, principalmente nas capitanias da atual Região Nordeste – e, mais tarde, no Sudeste. O que são capitanias? Está ai uma chance de falar sobre a divisão política e territorial da então colônia.
O tema ainda nos remete ao sistema escravista, que predominou no país por mais de três séculos e teve profundas influências na formação da sociedade. Afinal, era para cortar cana e produzir açúcar que os negros eram trazidos. Como era a vida deles nos engenhos? Quais as contribuições que tiveram na formação da cultura brasileira? Como você vê, é um sem-fim de possibilidades, elos e caminhos. Tudo isso, quem diria, começando por um simples doce.
A receita da cocada: “Raspa-se um coco, faz-se a calda de 1 quilo de açúcar, junta-se o coco à calda e lava-se ao fogo. Quando a calda estiver em ponto de fio, tira-se do fogo e mexe-se com uma colher de pau até um pouco antes de açucarar. Em seguida deita-se o doce numa tábua ou numa mesa de mármore; quando estiver frio, parte-se com uma faca em losangos e põe-se ao sol para secar”. Extraída do livro Açúcar, de Gilberto Freyre.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008



APRENDENDO A SER BRASILEIRO COM A MÚSICA DE LUIZ GONZAGA

O Brasil celebrou no dia 2 de agosto ultimo passado os dezenove anos da morte do cantor e compositor Luiz Gonzaga, o rei do baião. Lua, como também era conhecido, foi essencialmente um telúrico. Ele soube, como ninguém, cantar o Nordeste e seus problemas. Pernambucano, nordestino ou simplesmente brasileiro, Luiz Gonzaga encantou o Brasil com sua música, tornando-se um daqueles que melhor souberam interpretar sua alma.

Nascido em Exu, no Alto Sertão de Pernambuco, na Chapada do Araripe, ele ganhou o Brasil e o mundo, mas nunca se esqueceu de sua origem. Sua música, precursora da Música Popular Brasileira, é algo que embora não possa ser classificada como "de protesto", ou engajada, é, contudo, politicamente comprometida com a busca de solução para a questão regional nordestina, com o desafio de um desenvolvimento nacional mais homogêneo, mais orgânico e menos injusto, portanto.

Telúrico sem ser provinciano, Gonzaga sabia manter-se preso às circunstâncias regionais sem perder de vista o universal. Sua sensibilidade para com os problemas sociais, sobretudo nas músicas em parceria com Zé Dantas era evidente: prenhe de inconformismo, denúncia do abandono a que ainda hoje está sujeita pelo menos um terço da população brasileira, mormente a que vive no chamado semi-árido.

Não estaria exagerando se dissesse que Gonzaga, embora não tivesse exercido atividade política ou partidária, foi um político na acepção ampla do termo. Política, bem o sabemos, é a realização de objetivos coletivos e não se efetua apenas por meio do exercício de cargos públicos, que ele nunca teve. Política é sobretudo ação a serviço da comunidade. Como afirma Alceu Amoroso Lima, é saber, virtude e arte do bem comum.

Além de nunca ter omitido suas opiniões, Gonzaga também nunca se esquivou de participar ativamente quando necessário. Em um momento particularmente difícil vivido por sua terra, Exu, e tendo em vista as muitas mortes decorrentes da rivalidade das famílias Alencar e Sampaio, ele ergueu corajosamente sua voz.

Outro aspecto político da presença de Luiz Gonzaga foi ao resgate da música popular brasileira. A vigor de suas toadas e cantorias tonificou a nossa música, retirando-a do empobrecimento cultural em que se encontrava. Sua música teve um viés nacionalista, ou melhor brasileiríssimo, que impediu que lavrasse um processo de perda de nossa identidade cultural. Não foi uma música apenas nordestina, mas genuinamente nacional, posto que de defesa de nossas tradições e evocação de nossos valores.

Luiz Gonzaga interpretou o sofrimento e também as poucas alegrias de sua gente em quase duzentas canções, em ritmos até então desconhecidos, como o baião, o forró, o xaxado, as marchinhas juninas e tantos outros. Mas foi através de "Asa Branca" que "Lua" elevou à condição de epopéia a questão nordestina. Certa feita, Gilberto Freyre afirmou que o frevo "Vassourinhas" era nossa Marselhesa. Poderíamos dizer, parafraseando Gilberto Freyre, que "Asa Branca" é o hino do Nordeste; o Nordeste na sua visão mais significativamente dramática, o Nordeste na aguda crise da seca.

Gilberto Amado disse a propósito da morte de sua mãe: "Apagou-se aquela luz no meio de todos nós". Para o Nordeste, e tenho certeza para todo o País, a morte de Luiz Gonzaga foi o apagar de um grande clarão. Mas com seu desaparecimento não cessou de florescer a mensagem que deixou, por meio da poesia, da música e da divulgação da cultura do Nordeste.

Em sua obra ele está vivo e vive no sertão, no pampa, na cidade grande, na boca do povo, no gemer da sanfona, no coração e na alma da gente brasileira, pois como disse Fernando Pessoa, "quem, morrendo, deixa escrito um belo verso, deixou mais ricos os céus e a terra, e mais emotivamente misteriosa a razão de haver estrelas e gente."